MODIFICANDO ATITUDES

Quando dirigi o Laboratório de Tecnologia do Ensino da Escola de Educação Física da UFRJ ainda na Praia Vermelha, treinava e preparava os funcionários no manejo dos diversos equipamentos audiovisuais utilizados nas aulas teóricas por diversos professores, que já naquela época, início dos anos setenta, se interessavam por aquelas máquinas de difícil manejo. As aulas com diapositivos e filmes realmente ficavam mais interessantes, mas exigia-se um manejo apurado e manutenção permanente. Numa das sessões de filmes os dois funcionários responsáveis inverteram uma rotina ocasionando uma grave quebra no projetor. Ficaram muito abalados e se dispuseram a pagar pelo reparo. No campus ainda funcionava a oficina do núcleo de pesquisas físicas, e um dos técnicos forjou uma nova peça cobrando somente o material empregado, que mesmo assim alcançou uma cifra considerável. Pronto o reparo os dois funcionários já se cotizavam para o pagamento quando intervi dizendo que a conta seria dividida por nós três. Surpresos perguntaram o porquê daquela minha atitude. Mostrei a eles que se os tivesse preparado e treinado com mais precisão, com mais empenho, a quebra não teria ocorrido, e por conta de minha falha a despesa seria rateada pelos três. Não preciso dizer que nunca mais se repetiu a quebra, e que a confiança entre nós todos se solidificou, e o LTE só fez crescer dali para diante.

Por que recordei este fato administrativo ocorrido há tanto tempo atrás? Na minha carreira de técnico de basquetebol aquele fato determinou um comportamento primordial: deu-me a certeza de que o sucesso de uma atividade coletiva só se estabelece com intenso e participativo treinamento, com trocas permanentes de experiências, vivencias, convivências, erros e acertos, e, acima de tudo, com a humildade de encarar o erro de frente, de assumi-lo, discuti-lo e ultrapassá-lo. O jogo em si é o resultado do treino, do entendimento das partes envolvidas na luta, da doação em prol da equipe, das cobranças baseadas em fatos conhecidos e discutidos por todos. Daí, quando de um pedido de tempo, nada do que não foi treinado deverá ser exigido, pois não se deve confundir improvisação com aventura fugaz, pois só improvisa quem domina uma ação, um comportamento, uma técnica, em todos os seus pormenores. Um autêntico músico de Jazz desenvolve suas habilidades de improviso tocando desde as músicas clássicas ao mais puro gênero popular. Enfim, só improvisa quem sabe. Por isso me preocupa sobremaneira o reinado absurdo das pranchetas, pois o que se observa é a improvável fixação, por parte dos jogadores, de movimentos que quase sempre estão sendo pedidos pela primeira vez, fora dos padrões de treinamento, se é que aconteceram. Seria como ao iniciar um combate em um areal em campo aberto se exigisse dos soldados uma performance vencedora quando foram treinados para combates na selva. Recentemente assisti pela televisão um pedido de tempo que me assombrou, pois o técnico de tão centrado em sua prancheta elaborando ações mirabolantes, teve a surpresa de, ao levantar os olhos da mesma, se deparar com o banco praticamente vazio. Os jogadores simplesmente tinham saído sem que o técnico notasse. Lamentável.

Quando da final inesquecível do Campeonato Brasileiro Feminino em Recife, no longínquo 1966, passei todo o primeiro tempo praticamente tentando encontrar uma falha na equipe paulista que me desse subsídios para orientar minha equipe para a vitória. Não encontrava uma falha sequer, e então percebi, por conhecer profundamente as reações das jogadoras, e por tê-las treinado intensamente, que os erros estavam do nosso lado, imperceptíveis mas existentes, e pelo fato de termos aprendido no dia-a-dia a nos conhecer pude com uma simples e compreendida ação mudar nosso comportamento tático. Equilibramos as ações e vencemos na prorrogação, aquele que pode ter sido o último grande jogo entre seleções estaduais. Anos antes do ocorrido no LTE já se cristalizava em mim a grande certeza, aquela que deveria ser a certeza de todo técnico desportivo, a certeza de que cada ser humano tudo pode alcançar, na medida em que trabalhe duramente para consegui-lo, mas dentro de uma outra certeza, a de saber rigorosamente o que está sendo inicialmente pedido, e posteriormente exigido no âmbito de seu horizonte conhecido. Alcançado isto o improviso se torna possível e perfeitamente alcançável. Daí em diante, ao solicitar-se um tempo basta pedir para ser atendido por ser compreendido. Simples, não?

VÍCIOS DO NOSSO COTIDIANO

Quando treinava a grande equipe juvenil do Flamengo de 1965, com Peixotinho, Gabriel, Pedrinho, Robertinho, todos com passagem posterior pela Seleção Brasileira, o grande Togo Renan Soares, Kanela, fazia questão que após o treino de sua categoria participassem também do treino da primeira divisão, preparando-os para assumirem a equipe no futuro. Nesta equipe havia dois norte-americanos, que pouco ou nada entendiam do português. Num destes treinos comandado pelo assistente do velho Togo, me deparei, vindo do vestiário, com a seguinte cena: pedia-se ao Pedrinho ou ao Peixotinho que comandasse as jogadas com ordens em inglês para o entendimento dos norte-americanos. Intervi de imediato, já que eram jogadores da minha equipe, e fiz ver a todos que o correto era que eles, os norte-americanos, procurassem entender o nosso idioma pois estavam participando de uma equipe brasileira. Após um breve mal-entendido com o assistente, eis que um dos norte-americanos se aproximou e disse arrastando nossa lingua: “Coach, o senhor ter razão!”, e nada mais foi discutido.
Quando vejo hoje pela televisão nossos esforçados técnicos dando instruções paralelas, fazendo absoluta questão de demonstrar o quanto falam mal o idioma de nossos irmãos do norte para num espaço de 60 segundos criarem uma confusão digna de Babel, volto no tempo para recordar aquele gigante negro que na maior doçura afirmava “Coach, o senhor ter razão!”.

“E o pivô penetra na área pintada para mais uma enterrada!” E se a área não estiver pintada? O que dizer? Convenhamos, transmissões esportivas são, em qualquer parte do mundo, formadoras de opiniões. Criam hábitos, formam e divulgam atitudes, são extremamente importantes como veículo de conhecimentos para públicos diversos, jovens em particular. Por que não manter a designação “garrafão”? E o pior é que traduzem errado, inventam o que não existe, senão vejamos. Os norte-americanos designam a área restritiva (por ser a zona dos 3 segundos) por Paint, não como se a mesma fosse pintada, e sim com o significado de”moldura”, por envolver a área restritiva. Mas, por que o termo garrafão? A primeira imagem que o Brasil teve das marcações de uma quadra de basquetebol na primeira década do século passado, tinha na área restritiva a conformação idêntica aos garrafões de vinho da época. Essa forma só foi mudada com a adoção, em 1952, da área restritiva que até hoje vigora nos campeonatos universitários dos EEUU. A tradição em português deveria ser mantida como uma conquista da vontade popular, mas o certo, o elegante, o”fashion”, são novas designações, “novos tempos”.

E o que dizer dos palavrões em linha aberta, para todo o território nacional, não em inglês e sim no idioma castiço!? Será que o simples fato de passar instruções técnicas se coaduna com verdadeiros massacres da língua-pátria? Professores, todos vocês estão sendo vistos e ouvidos por muitos jovens, em todos os recantos do Brasil. Eles merecem mais consideração, mais respeito, mais cultura. Incentivo psicológico passa a quilômetros de distância de palavrões e xingamentos. Decisivamente este não é um comportamento educativo. Mas nesse ponto muitos advogam a premissa de que técnico é uma coisa, professor outra. Nem aí copiam bem nossos irmãos norte-americanos, pois todos os técnicos da área estudantil (primária, secundária e universitária) lecionam disciplinas outras que não o basquetebol quando fora da temporada, daí seu prestigio junto às comunidades a que pertencem. Por toda a minha vida profissional sempre dei aulas e sempre treinei equipes, onde as experiências de uma área enriqueciam as da outra, sistematicamente. E este acúmulo de funções e responsabilidades nortearam minhas ações, meu comportamento, minha educação. Prezados colegas, ensinar, pela seriedade da função, não se coaduna com palavrões e xingamentos, tomem cuidado!

Quanto à gesticulação ao lado da quadra, a que denomino da “síndrome da luz vermelha” (pequena, porém brilhante lâmpada piloto que indica uma câmera de televisão em função), vício “importado” de alguns treinadores de futebol que, ao verem a luzinha acesa, desandam a gesticular e falar como se àquela distância algum jogador pudesse ouvir o que dizem. Mas impressiona e dá a entender grande participação no jogo, e também ajuda a manter empregos. Equipes bem treinadas e bem coordenadas dispensam tais coreografias.

Enfim, muitas modificações teremos que adotar para melhorarmos no âmbito desportivo e sugiro, como um razoável começo, que os técnicos saiam de suas auto-suficiências, desçam ao nível do solo, e tentem discutir, trocar idéias, simplesmente se reunir, como fiz no passado ao idealizar, propôr e organizar as primeiras associações de técnicos de basquetebol no Brasil, a ANATEBA, a BRASTEBA e a ATBRJ, e quando após o fracasso em Los Angeles reunia os técnicos cariocas na FE da UFRJ na Praia Vermelha somente para discutir, dialogar, trocar experiências. Tude Sobrinho, Heleno Lima, Ary Vidal, Chocolate, Waldir Bocardo foram alguns que não faltavam aos encontros das quartas-feiras à noite. Como aprendemos, como evoluímos. O basquetebol brasileiro precisa discutir seu futuro, e não serão dirigentes, políticos e afins que resolverão o problema, pois estes só encontrarão resolução com a participação de quem entende, vive e desenvolve o jogo: os técnicos.

Triângulos, Passing game, Pick and Roll e outras bobagens afins…

Peguemos um pedaço de giz e desenhemos na lousa as figuras geométricas de um círculo, de um quadrado, de um pentágono, de um triângulo e uma reta. Em cada uma das figuras tentemos distribuir os cinco jogadores de uma equipe. Em duas delas é possível distribuir igualmente os cinco jogadores, o circulo e o pentágono. No quadrado somente quatro jogadores, na reta, dois, e no triângulo, três. Tanto ofensiva quanto defensivamente, a distribuição no círculo e no pentágono mantém os jogadores distantes entre si, propiciando grandes espaços ao domínio dos jogadores oponentes. No quadrado também se formam esses distanciamentos com menos um jogador. Na reta só é possível a participação de dois jogadores, tornando a ação dos oponentes majoritária. Somente na forma do triângulo podemos exercer superioridade numérica, tanto pela proximidade física quanto pela abrangência visual. Por essa singularidade as formações triangulares sempre foram objeto de estudo pelos grandes técnicos, a partir de Clair Bee, no longínquo ano de 1932, quando da publicação de sua coleção clássica de livros voltados para o estudo do basquetebol. Recentemente alguns técnicos norte-americanos redescobriram a roda, tentando convencer o mundo da criação do sistema mágico dos triângulos. Aqui no Brasil, nos anos sessenta quando as marcações por zona reinavam absolutas, sugeri ao técnico Paulo Cesar do Grajaú T.C., que decidia com o Botafogo o campeonato carioca juvenil, que utilizasse uma movimentação fundamentada em triângulos móveis dentro da defesa por zona, o que resultou em total domínio ofensivo.Um pouco mais adiante utilizei a mesma movimentação no Campeonato Brasileiro Feminino em Recife, quando vencemos a grande equipe paulista, magnificamente treinada pelo mítico Campineiro. A movimentação dos triângulos móveis é utilizada até os dias atuais por alguns técnicos que não se deixaram enfeitiçar pelo modelo NBA de passes quilométricos em contorno do perímetro da cesta. Há de se convir que para um limite de 24 segundos, o excesso de passes torna os arremessos precipitados e, por conseguinte, desequilibrados. A figura da reta somente propicia uma ação ofensiva, que é o “Dá e Segue” (Pick and Roll?), que muitos narradores teimam em rotular como uma ação triangular, pelo fato de um dos jogadores se deslocar de um ponto para outro para conseguir a posse da bola.Toda ação ofensiva visando a supremacia numérica em uma determinada área da quadra é fundamentalmente triangular, fator descrito desde os anos trinta pelos autores clássicos do jogo como Nat Holman, Clair Bee, John Bunn e Forrest Allen, nenhum deles mencionados pelos descobridores do Sistema dos Triângulos. Oportunistas também existem pela terra de Tio Sam, ainda mais pelo peso dos dólares do profissionalismo desenfreado.

Gostaria de tentar explicar o que vem a ser e o porquê da existência do Sistema de Passing Game, tão apaixonadamente adotado pela maioria dos técnicos brasileiros, e de tão funesta influência sobre o nosso modo de jogar. Como é do conhecimento de todos, até os anos sessenta vigorava no basquetebol universitário americano o tempo ilimitado de posse de bola após a ultrapassagem do meio da quadra. Essa característica dava aos técnicos o tempo que quisessem para fazer com que suas equipes utilizassem não uma, mas quantas movimentações fossem necessárias para suplantar a defesa. Com o advento dos 45 segundos tornou-se necessária a adoção de uma movimentação que mantivesse os jogadores presos ao comando tático exercido pelos técnicos de fora das quadras. A troca seqüencial de passes propiciava esse comando, e mesmo quando da diminuição de 45 para 35 segundos de posse de bola ele foi mantido.O jogo baseado no drible determinava ações que fugiam do rigor tático e, por conseguinte, do controle das ações pelos técnicos. O Passing Game preenchia essa necessidade de controle das ações ofensivas por parte dos técnicos, dando aos mesmos todo e qualquer poder decisório.Transformaram as ações ofensivas em coreografias, onde quase todos os movimentos eram determinados pela vontade deles, mesmo não participando das ações diretas. Nascia também a influência das pranchetas, até hoje presente na maioria esmagadora dos jogos. O jogo com a limitação de posse de bola nos 24 segundos só é utilizado nos Estados Unidos entre os profissionais, mas a utilização do Passing Game ainda é mantida, graças a um estratagema inteligente, a obrigatoriedade das defesas individuais ou por zona não se beneficiarem das flutuações, fator que inviabiliza o confronto de um contra um. No caso do basquetebol jogado pelas regras internacionais, com a permissão de flutuações laterais ou longitudinais à cesta, o Passing Game como o empregado pelos profissionais americanos transformou-se em um festival de erros e precipitações nos arremessos ocasionados pela premência de tempo, pois 24 segundos sob as ações permitidas às defesas pelas regras internacionais limitam criticamente as liberdades que as mesmas detêm sob as regras da NBA. Esses fatores só se tornam visíveis quando os profissionais jogam sob as regras internacionais, e mesmo seus fracassos recentes não fazem com que nossos técnicos reconheçam o quanto estão enganados ao adotarem tal sistema. O poder da propaganda, com uma mídia bem direcionada e mundialmente divulgada obliterou em muito a capacidade de pensar e de analisar de técnicos, críticos e jornalistas envolvidos com os fundamentos do jogo, quando para a maioria as “enterradas”, os “double-doubles” e os “triples-triples” passaram a ser a essência do jogo. Alguns países já tentam superar essa globalização do “basquete internacional” e o resultado das últimas olimpíadas atesta bem isto. Só espero que os técnicos brasileiros acordem de seus berços esplêndidos e voltem a estudar e a soerguer nossa verdadeira maneira de jogar, pois não foi jogando como jogamos hoje que conquistamos dois campeonatos mundiais e três medalhas olímpicas entre os homens, e um campeonato do mundo e duas medalhas olímpicas entre as mulheres. Muito trabalho temos pela frente, e podemos começar pelas atitudes mais básicas em qualquer manifestação humana, humildade e muito estudo.