A OPORTUNA DICOTOMIA…
“Precisamos de um técnico estrangeiro, e que um técnico brasileiro faça às vezes de auxiliar técnico, para aprender como se joga o basquete europeu, atual campeão do mundo, cujos princípios técnicos e estratégicos são seguidos pela Argentina, a campeã olímpica”. Esse é o clamor que toma vulto entre os “entendidos” do grande jogo, visando influir na decisão final e irrecorrível que advirá da vontade absolutista do grego melhor que um presente, e sua acessoria técnica da mais alta qualidade e competência, claro, votos federativos à parte.
Lembro-me como se fosse hoje, uma participação num seminário técnico-prático em Lisboa no final dos anos oitenta, quando fazia meu doutorado com uma tese sobre arremessos com uma das mãos no basquete, e naquela ocasião o célebre técnico espanhol Juan Teña liderava o seminário junto aos mais de 200 professores e técnicos portugueses, onde o ensino dos fundamentos era o tema central. Na época, a associação dos treinadores espanhóis já se posicionava como o elo mais importante para a hoje internacionalmente reconhecida escola espanhola de basquetebol, trabalho este que evoluiu até à recente conquista do Campeonato Mundial. Tive a oportunidade de debater longamente com o Juan sobre o preparo e treinamento de pivôs, cujos princípios diferiam profundamente entre nós. Foi uma proveitosa discussão que se prolongou até o jantar de despedida que os técnicos e a federação portuguesa ofereceram a ele. Nesta noite foram lançadas as bases da associação de técnicos de Portugal, entidade que implantou uma nova era de progresso, qualificando-o no forte cenário do basquete europeu. Hoje mesmo, a equipe portuguesa surpreendeu ao se qualificar para as quartas de final do Pré-Olimpico que se realiza na Espanha.
Porque rememoro esta minha passagem por terras européias? Exatamente por ter constatado que a base de todos os sistemas ora empregues pelas equipes do velho mundo, têm como pétreo alicerce o domínio didático e pedagógico do ensino dos fundamentos, único e decisivo elemento que o diferia da grandeza do basquete norte-americano, com sua cultura de massa na difusão e prática dos fundamentos do jogo, sem os quais nem a mais primaria das jogadas coletivas, o give and go, o dá e segue, poderia ser concretizada com um mínimo de qualidade e sucesso. A existência quase mítica de pequenas tabelas ovais de basquete fixadas em portas de garagens residenciais, cercas em pradarias, e até mesmo emergindo de nevascas, como o ícone determinante junto aos jovens, chamando e incentivando-os aos embates de um contra um, onde dribles, fintas, arremessos e posicionamento defensivo eram progressivamente desenvolvidos, calou fundo no desejo incontido dos europeus em se rivalizarem aos americanos, e cujo único caminho a ser trilhado para a consecução de tal objetivo, era ensinar e divulgar os fundamentos de forma igual ou superior alcançada pelos mesmos.
Então, com esses princípios de ensino qualitativo dos fundamentos implantado pelos técnicos, em torno de associações que se espraiaram pelo continente europeu, apoiadas e aceitas pelas federações, como entidades autônomas, os princípios de qualquer sistema de jogo que pudesse ser empregue, adaptado, criado, e até inventado, seria lastreado pelo domínio técnico individual de cada jovem envolvido no processo, participante das diversas categorias de equipes, divididas entre clubes e escolas, até chegarem às categorias de elite, às seleções.
E de repente por aqui aporta um destes técnicos (importante saber com precisão sua real origem e comprometimento profissional), que se deparará com uma realidade que deixou de existir no seu velho continente 40 anos atrás, tomando em mãos o preparo de uma seleção que peca nos mais comezinhos detalhes dos fundamentos, com armadores nem sempre ambidestros no drible e nas fintas, com jogadores que passam mal e fora de enquadramento, que desconhecem os posicionamentos básicos defensivos, que saltam erradamente nos rebotes, que arremessam desconhecendo a mecânica dos lançamentos, que desconhecem os sentidos lateralizados de coberturas defensivas, mas plenos de força física, de velocidade e de alguma, senão presunção, de que pertencem à elite do basquete mundial, por participarem, na maioria dos casos, como reservas em suas equipes estrangeiras.
E ele, com seus conceitos táticos, que foram os responsáveis pela sua contratação, vide a mania e o engodo nacional de que técnico de quadra é um, técnico de preparação é outro, canhestra dicotomia que sedimentou entre nós a mentira de que sistema tático( o que denomino coreografia…) é que vence jogo, instrumento este de posse e uso de uma comunidade de técnicos que o implantou, divulgou e disseminou por todo o país, e para os quais perder tempo no ensino dos fundamentos é assunto censurado e sequer discutido, fazendo-os sempre estar acompanhados daqueles poucos jogadores que executam razoavelmente determinados fundamentos, garantindo a manutenção do padrão de jogo único praticado por todos, e ele, repito, se vê perante tal realidade, manietado pelas limitações óbvias retratadas ante seus olhos. E o que faz, ou melhor, o que fará, ou, o que exigirão que faça?
A resposta mais plausível e lógica? Nada, absolutamente nada! Por mais genial que seja, por mais desprendido e otimista que seja, por tradição de oficio, e por conhecimento profundo de causa, logo diagnosticará, assistindo um simples taipe, quão frágeis são as bases de técnica individual de nossos melhores jogadores, principalmente no conhecimento e na prática dos fundamentos, que em consideração final , é o fator determinante de nossa fragilidade técnico-tática.
Aplicará seu tempo hábil, tão destemido técnico estrangeiro, no preparo técnico individual dos jogadores, ou partirá célere na implantação dos princípios táticos praticados no continente europeu? Se bem conheço, e os conheço, nenhum técnico de alto nível arriscará seu prestígio e tradição na direção de uma equipe incapaz de prover suas exigências técnicas, pela exigüidade de seus fundamentos, a não ser que abra mão de Pequim 2008 em função de Londres 2012, quando então terá tempo suficiente para se fazer entender e divulgar em sua concepção do grande jogo.
Claro, que nada pode evitar que apareçam candidatos estrangeiros ao cargo, pois aventurar e jogar com o acaso não é reserva de mercado somente nossa, eles também a têm, vagando pelo mundo, angariando bons lucros com o ouro dos tolos e deslumbrados.
Temos as soluções aqui mesmo em nosso país, soluções estas factíveis na proporção direta em que influências políticas e personalistas dêem passagem ao bom senso e aos técnicos de verdade, aqueles não dicotomizados pela criminosa e oportunista separação entre estrategistas e suas pranchetas milagrosas e técnicos que preparam e dirigem seus jogadores num todo, entre fundamentos e sistemas de jogo, indissociados entre si, por se completarem e interdependerem. O mais é conversa fiada de quem torce e deseja que as coisas continuem como estão, pois facilitam e perpetuam suas decrépitas permanências, logo que a tempestade de poeira baixar. Amém.
